Artigo – Um país surreal

José Renato Nalini*

A OAB de São Paulo promoveu um encontro para debater o Projeto de Lei 6204/19, da Senadora Soraya Thronike, que retira da órbita do Poder Judiciário as execuções fiscais. O tema é antigo. O Brasil demandista já chegou a ter 100 milhões de processos judiciais em curso, dos quais cerca de 70% eram cobrança de dívida ativa da União, Estados e Municípios.

Poucas as vozes, dentro do Judiciário, que ousavam insistir na irracionalidade de tal sistema. A maioria acreditava ser normal que a cada final de ano, centenas de milhares de certidões de dívida ativa fossem arremessadas aos cartórios judiciais. A partir daí, a responsabilidade era do Judiciário. Procurar o devedor, cujo nome nem sempre estava correto. Endereços desatualizados. Uma burocracia incrível, um retrabalho insano e um resultado pífio.

Ainda hoje, o trâmite de uma execução fiscal tem uma média de sete anos de calvário para os que nela trabalham. Há uma taxa de congestionamento de 80%, somente 15% dos 17% de executivos que chegam ao final obtêm satisfação. A um custo de 65 bilhões, pois cada execução custa 5 mil reais aos brasileiros que sustentam o sistema Justiça.

A advogada Raquel Elita Alves Preto, uma das idealizadoras, ao lado de Flávia Pereira Ribeiro e Cláudia Elisabete Schwartz, trouxe dados instigantes. O Brasil é um dos países mais cruéis em relação ao contribuinte que não consegue adimplir suas obrigações junto ao fisco. Em nenhum país do mundo chega-se a cobrar 150% de multa, nem juros escorchantes, que desrespeitam o Código de Defesa do Consumidor, a taxa-los em 2% ao máximo. Como disse a dra. Raquel, o “kit de maldades” é intolerável, mormente porque o Brasil tem uma carga tributária excessiva, para devolver à população serviços públicos abaixo de qualquer crítica.

Foi bem interessante a postura do juiz federal Marcelo Barbi Gonçalves, que justificou o projeto de lei e a previsão de que a parte administrativa da cobrança da dívida ativa seja entregue ao tabelião de protestos. Um parecer da OAB Federal sugeriu que essa função fosse entregue aos advogados. Mas, conforme ponderou o magistrado, advogado não detém a fé pública transmitida ao tabelião e aos demais delegatários do chamado foro extrajudicial, pelo constituinte de 1988.

Minha participação de aplauso à Senadora do Mato Grosso do Sul, às destemidas advogadas paulistas que encamparam a discussão e ao corajoso magistrado que não titubeou ao afirmar que a nossa estrutura judiciária é extrativista, muito distante do ideal de um sistema a voltado à consecução dos objetivos permanentes da República Federativa do Brasil, trouxe a preocupação de que setores do próprio Judiciário ofereça resistência à aprovação da proposta legislativa.

É que já ouvi magistrados dizerem que a Justiça é uma eficiente arrecadadora de recursos financeiros para o funcionamento do Estado brasileiro. Isso desequilibra o funcionamento da Justiça, como tenho tido oportunidade de comprovar. Passa a ser um equipamento fazendário, fiscalista, não apenas por ideologia, mas por interesse. Afinal, se o Judiciário consegue arrecadar mais para o governo, não haverá mais como argumentar que não há verba para construir e equipar um novo Tribunal. Deixando de lado a discussão sobre a necessidade ou não de mais um órgão de Segunda Instância para uma nação que já tem quase cem tribunais.

Na verdade, cobrança de dívida não é exercício de jurisdição. É função administrativa, conforme o reconhecem os países civilizados. Apenas por um conluio de interesses é que no Brasil esse procedimento seja entregue ao Judiciário, que só existe para resolver conflitos, não para ser cobrador de créditos das entidades da Federação.

Com a aprovação do Projeto de Lei 6204/2019, talvez o sistema Justiça possa vir a dar conta das demandas que diariamente ingressam nos fóruns e tribunais e atravancam o equipamento estatal do qual também se exige observância do princípio fundamental da eficiência.

É um bom passo para a reengenharia do Poder Judiciário, que não se submeteu à profunda reforma estrutural de que necessita. A Justiça, como os demais serviços públicos, exigem para atender à cidadania. Não são territórios inexpugnáveis, que devam atender a interesses dos próprios integrantes. Quando a sociedade acordar para isso, talvez se chegue à Justiça que merecemos e que é a de nossos mais legítimos anseios.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022

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